domingo, 29 de dezembro de 2013

projeto de zine: departamento do dogma


"A verdade, pois, é uma merda,
não importa
por que duto se desça pra cair nesse esgoto
E quem filosofa
é porque curte mesmo um scat. Não tem jeito, cara
você tá nessa, e sabe disso. Então
Desiste desse papel
Higiênico
E Vem encher minha boca
de liberdade."

0 - Proposta niilista, anti-capitalista, anti-humanista; preconizando a desistência.

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1 -- O Departamento do Dogma é uma instituição inexistente. Buscamos regular, reger, produzir e instaurar campos de verdade.

2 -- Comunicamos extra-oficialmente, alheixs às barreiras institucionais estatais, racionais, ontológicas, a inexistência de um princípio que torne possível a comunicação & que a comunicação é uma ficçã trêmula e ineficaz, e que nos comunicamos, mesmo as pessoas mais eloquentes, com a eficácia com que se desenha sobre a água.

3 -- Desistir não é entregar-se -- entregar-se, atualmente, é resistir: e resistir é continuar no jogo, seguir suas regras. Apenas com uma negação completa se joga com uma liberdade além das mentiras liberalizantes da sociedade contemporânea: apenas desistindo é que podemos nos tornar reais.

Façamos um pacto: desista!
 & junte-se a nós;
  do fundo do poço podemos
  erguer barricadas. E aqui
  ninguém pode nos ver.

000 --
"Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata."

Desistir é o ato de fazer-se presente não pela resignação ou pelo apelo à representação, mas sim a negação absoluta de tudo o que nos define, oprime e abstrai. A negação de tudo que nos sufoca, nos conceitua e divide -- que nos corta & impõe tal ritmo, tal palavra-de-ordem, tal estrutura psíquica. Desistir é o ato de navegar no mundo pela negatividade, existir num mundo negando a representação e o apelo à legitimidade e, em contra-partida, buscar transpor os cortes que fizeram em nossa carne -- que nos move, numa vida de sujeitos tais ou quais, de características ímpares ou pares. Desistir é transpor a política como conhecemos, que é uma forma de nos desinfectarmos e limpar nossos corpos de estigmas que nunca sairão enquanto as cicatrizes e cortes ainda pulsante que possuímos forem não considerados problemas de ordem individual, mas de ordem social, política, superior. A faca que nos corta é um fato social: faz com que nos cortemos entre xs nossxs, nos joga num mundo pré-disposto à chacina, e corta a todxs. Pensar em nós mesmxs como indivíduos injustiçados e apontar algozes nos exime da culpa de sermos também algozes de outrem: a faca que nos corta, utilizamos para cortar mil outrxs -- e isso é a resignação: aceitar a individualidade a princípio, apontarmos algozes, sermos ativxs nessa grande máquina produtora de culpa: desviamos a realidade para o apontamento direto de culpadxs mas nunca para o problema: não somos tão importantes assim.

Nós, enquanto sujeitos, somos processos em constante produção: somos produto imediato do nosso espaço e do espírito de nosso tempo: a liberdade é uma ilusão-enfeite que o ordenamento social que calcula cada passo, cada palavra, cada ato de resistência, nos dispôs a aceitar como verdade maior -- talvez a questão da liberdade não seja mais "posso/não posso fazer isso?" e sim "quais as coisas que posso fazer?". Nossa individualidade, nosso self, o que temos consciência de mais profundo em nós não passa de uma colagem calculada de imagens e espetáculos que, pela repetição, produz em nós uma sensação de pertencimento: esse é meu nome, meu corpo, meu jeito de trepar, minha forma de vida: essa é a mentira que nos contaram e, à força da repressão, nos fizeram acreditar.

A faca que corta nossa pele, que extirpa órgãos e nos tira confissões à força é a mesma faca rabisca em nossos corpos a insígnia de grupos, identidades, nações e impérios. Resignar-se é também louvar essa divisão monótona que nos une com o mesmo propósito/imperativo escuso dos regimes totalitários: que haja silêncio -- entre xs mesmxs, há murmúrios e lamentos, uma estima fria que não passa de efeito da realização de que, sim, estamos entre xs nossxs, estamos todxs fodidxs. Mas a "verdadeira" (se é que à essa altura podemos falar de verdade) união é a união que transpõe as diferenças sangrentas e busca a construção de uma ladainha aberta. Não aberta como a proposta liberal multiculturalista em que todxs devem falar, pois toda fala é válida, mas para destruir esse mito da verdade e da validade no que se diz e no que se sente -- cada qual sente e diz à sua maneira. A proposta de uma união que visa a destruição do mito da verdade segue um esquema de confronto e embate constante, nao entre pessoas/sujeitos/corpos, mas de vozes e ideias: pelo embate de diferentes vozes, cada uma desejando o poder à sua maneira, cada uma enunciando uma verdade universal partindo de uma experiência particular específica -- nessa disputa pela voz e o poder, será levada a cabo a experiência da negação da diferença: quando todxs verem que não há verdade em palavra alguma, de sujeito algum, de grupo algum, senão perspectivas, opiniões e delírios autoritários, surgirá a verdadeira face da multidão: uma face sem nome, que não é ninguém.

Acima do ruído dessa ladainha multitudinária pode-se ouvir sua verdade singular: cada qual crê piamente em sua própria verdade, na verdade dxs que se alinham por afinidade. Essa é a grande mentira: a produção dessa verdade ilusória -- a razão de todo embate. E é um mecanismo que se repete: cada sujeito crê em sua verdade, na verdade do grupo que compõe, da nação que adora, do império que defende. Mesmo prxs que não adoram nações e defendem impérios -- agrupam-se pela sua não-adoração, pelo seu desprezo. Essa realidade de produção de verdades-mentiras se funda no consenso, na distância entre os corpos e em mentiras arbitrariamente organizadas e intenta subsistir à nossa custa, seja alimentando-se de nosso sangue, seja minando nossa sanidade.

"Afinal, o que quer a multidão? Mais saúde e educação? Ou isso e algo ainda mais radical: um outro modo de pensar a própria relação entre a libido social e o poder, numa chave da horizontalidade, em consonância com a forma mesma dos protestos?"

Temo que isso soe como uma proposta determinista